quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Não



Acordou tentando lembrar que tudo aquilo poderia ter sido um sonho. Não era.
Sua mãe era tão parecida com ela que era impossível as duas não entrarem em conflito diariamente. Enquanto tentava em vão escrever doces palavras em paginas brancas do seu notebook, seu gato se revirava ao seu lado, em movimentos preguiçosos de quem não tem mais nada pra fazer além de dormir e doar carinhos. Suas pequenas patas gordas pousavam em sua coxa, como se implorassem: olha, me dê carinho, eu estou aqui.
Nesse mesmo tempo, sua mãe reclamava na cozinha, da pia suja deixada pelas taças de vinho da noite anterior. Eram tão parecidas as duas que até a unha do dedo mindinho doía quando andavam pelas areias da praia. A unha dela, e a da garota.
Parou por um momento para ler uma mensagem no celular, e fez carinho no seu gato, que se revirou mais, pedindo mais atenção. A mensagem não era a que ela esperava. Lembrou que não tinha sido um sonho.
Seu pai gritou algo da sala, perguntando se alguém queria ir no supermercado. E ela foi.
Precisava sair um pouco daquela casa, e nada melhor que uma volta de carro com o seu pai para esfriar um pouco os ânimos. Seu pai não era tão parecido com ela, mas ela sabia que mesmo sendo a garotinha das bonecas rosas dele, ela poderia conversar sobre furadeiras, cadeados e luzes compradas em alguma loja de construção da cidade, sem que ele a julgasse. E naquele momento, era o que ela precisava.
Não estava disposta a refletir sobre a existência de dores no mundo moderno, ou a questão da estética em filmes nazistas dos anos 40. Estava disposta a dar risada com o seu pai, sobre as roupas estranhas das pessoas no supermercado. Sem que ninguém perguntasse o que tinha acontecido na noite anterior. Sem que ninguém perguntasse o motivo dela ter ido dormir cedo, ou ter se fechado em seu quarto para digitar textos que nunca seriam publicados.
Depois de uma tarde divertida e leve com o seu pai, embaixo de chuva, ela voltou pra casa, e deu um abraço em sua mãe. Que claro, não entendeu nada e começou a achar que ela tivesse quebrado alguma das taças de vinho, usadas na noite anterior. Pegou seu notebook e colocou no colo, de novo, e terminou o texto que estava há horas tentando terminar. E terminou com a leveza de uma pena, que era como estava se sentindo dentro do seu coração. Precisava daquele vazio, precisava daquela amargura de uma noite, precisava de um conflito, uma violência consigo mesma. E precisava daquela solidão noturna, envolta de vinhos e cervejas, precisava de um “não”. Um “não” que nunca tinha escutado no mesmo tom, que a fizera acordar, como acordou de manhã.
Passou as mãos no pêlo do seu gato, que ainda estava lá, esperando por ela. Colocou uma música do Marcelo Camelo em seus fones de ouvido, e disse a si mesma, a mesma frase que disse à sua mãe quando essa lhe perguntou o que ela queria, o que ela tinha aprontado.
“Tá tudo bem, agora está tudo bem. Nada está no lugar, mas não há nada que possa resolver. Nada”. 

Nenhum comentário: