quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

lenço



Ela sempre foi do tipo que superava tudo, e aos 7 anos de idade teve que fazer operação nas amigdalas por causa das dores de garganta. As dores vinham acompanhadas de febre, dor de cabeça, tremores e náuseas. Depois da operação, ela obteve a voz aguda conhecida por todos. Eu, sempre com o meu olhar, nunca precisei gritar pelo que queria. Muitos usavam suas táticas para conseguir as coisas, choravam, argumentavam, chantageavam. E ela, mesmo com a sua voz fina feito gralha, falava, gritava, contestava. Gritava mais do que deveria é verdade, mas gritava com os pulmões e coração. Nunca fui assim, sempre abaixei a cabeça e chorei aos sete cantos pelo que eu queria. Quando a vida a derrubava, ela tentava de cabeça erguida passar por cima, se levantar. Eu sempre continuei caída. Viagens, traições, mortes de parentes e amigos nunca a derrubaram. Comigo, era só um fora de alguém, eu já chorava por causa disso. Ao invés de derrubarem, ela gritava, e todo mundo era obrigado a ouvir. Até eu mesma tive que escutar os lamentos dela pelo mundo injusto que vivíamos.

Lembro-me de uma vez, em que ela gritou no metrô por causa de uma mulher que carregava uma criança no colo, ás 8h00 da manhã na estação da sé, e ninguém se levantava para dar lugar àquela senhora e seu filho. Ela pediu a um homem que fingia dormir, para que se levantasse. Esse se negou. Em um momento como eu nunca tinha visto, suas mãos tremiam de nervoso e então, ela gritou. Um grito oco, de raiva e indignação. Ela sempre teve isso. Eu não.
Deve ser tudo trauma da cirurgia de amígdala, que fez aos 7 anos. Deve ser  trauma por tudo que sempre sonhou, sempre ter dado errado. Trauma de tudo que planejava, ter que mudar em cima da hora, porque nada saía como ela queria. E ela se adaptava, em tudo. Mas um dia ela cansou de gritar, e foi aí que ela me enxergou. Por dias, percebi que ela me imitava. E eu que sempre senti inveja da voz dela. Olhava cabisbaixa e concordava com tudo. Nos olhávamos nos olhos e nos reconhecíamos, como iguais. Ela procurava em mim, os lábios que havia perdido, mas eu não pude dá-los. Procurou os meus olhos frios e fortes, e não os achou. Me senti estranha, porque me via nela e ela não se achava em mim. Ela permaneceu assim por dias, emagreceu, se tornou fraca e parou de gritar.

Hoje ela me olhou de novo. Penteou o cabelo na minha frente e tirou o lenço vermelho amarrado no pescoço. Soltou os braços e dançou pra mim rindo. Ela me disse que iria voltar a cantar, e que se danem quem não gosta da voz dela. É o que restou:  Os gritos e a indignação que saía pela garganta e que nenhuma amígdala inflamada pôde conter.
Eu voltei ao normal, sem voz, só com olhares, repetindo tudo que ela faz, à minha maneira. Continuei presa na parede do quarto dela, com alguns detalhes pendurados em meu reflexo. 
Ela não, ela voltou a dançar e a gritar. E eu me senti aliviada.

Nenhum comentário: